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A Condição Humana

António Melo

“Clandestino”, a mais recente obra de Abi Feijó é um filme de Natal. Triste. Não tem estrelinhas ou repicar de sinos, nem milagres que transformem o frio em calor ou a solidão em multidão. Realista? Também não. É uma ficção sobre a condição humana, essa condição para a qual procuramos uma definição há milénios e que continua irredutível às análises da ciência, como já se revelara indecifrável para a filosofia.

O que faz um homem deixar os seus para ir para uma terra estranha, correndo perigos desconhecidos? A necessidade? A aventura? Um desafio consigo mesmo? Uma prova de amor?

Este “Clandestino”, calado, no calado frio de um navio, não nos diz qual destas motivações o faz mover-se do rincão português para a terra prometida de um outro continente. Nos riscos da areia de que é feita esta narrativa ficam todas estas possibilidades e algumas outras que outro espectador nela saiba ver.

É que este conto de José Rodrigues Miguéis, que inspirou Abi Feijó é, realmente, um conto de Natal. Até lá estão, no final, os votos: “Merry Christmas!”, gritados em grossa voz ao “Clandestino”. Até lá está o milagre de uma salvação oportuna, vinda de uma mão que pensávamos ser de algoz e que afinal é a da fraternidade.

Porquê então este desconforto perante sinais aparentemente tão evidentes da mensagem feliz de um conto de Natal? É difícil de explicar, até porque o autor não se alongou muito nesse aspecto. Fica a impressão que ele quer interpelar a má consciência do espectador, o seu egoísmo consumista, aquele que se tranquiliza dando aos pobres o que está destinado a ser lixo. Mas, como o autor não quer cair no moralismo, fica apenas um olhar.

Nenhuma das duas figuras principais do filme — o clandestino e o agente da autoridade — nos toca por aí além. Não lhes conhecemos o nome, não entramos na sua intimidade afectiva. São protagonistas de uma acção, é tudo.

O próprio suporte que sustenta a narrativa é fugaz — um banco de areia. Um alisamento com a mão e pronto, desaparecem as rugas de um olhar angustiado e o que se torna realidade são os grãos de areia. Uma forma grosseira de pó.

As imagens não se explicam por si. É necessário que uma voz nos explique o que vemos. Tudo aquilo passou-se, mas chega-nos em segunda mão, por alguém que tem o dom de fixar a memória em palavras e imagens. A interpelação à consciência individual do espectador sobre a sua condição humana esbate-se assim num discurso de “ouvir dizer”.

É esta uma diferença entre este  e um anterior filme de Abi Feijó, “Salteadores”. Neste  também a narrativa principia por um “ouvir dizer”, mas que acorda no motorista o testemunho irrecusável de quem viu e ficou para contar, mesmo se essa recordação o deixa ainda e sempre alagado em suores frios.

Em todo o caso, estes dois filmes são discursos sobre a condição humana. São partes de um estudo a que Abi Feijó há muito se dedica e espera-se que possa ser continuado com a adaptação de um conto de Miguel Torga, anunciado desde 1994 como uma média-metragem. Deve ter ficado presa algures, mas, como é próprio da condição humana, deseja-se que possa agora começar a ser trabalhada para que tome forma — e realidade.

 

António Melo


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